domingo, 25 de julho de 2010

A silhueta do jornalismo que virá




por


Marcelo Soares*

_ Não esconda o jogo, Aron. Pra que lado o New York Times está apostando que vai o jornalismo, nesse cenário de convergência?

_ Sei lá, minha bola de cristal é tão boa quanto a sua. Mas a chefia vai liberar um orçamento pra fazer experiências.

Numa noite do verão londrino de 2007, depois da terceira ou quinta garrafa de vinho entre jornalistas numa pizzaria, após um curso de jornalismo investigativo do Centre for Investigative Journalism, eu tentava persuadir Aron Pilhofer a me dar as chaves da compreensão das mudanças do jornalismo. O editor de bancos de dados do mais fascinante jornal do mundo, o jornal que melhor se adaptara à convergência digital até então, devia certamente ter uma carta na manga. Até tinha; só não tinha certezas.

O jornal acabara de oferecer ao meu novo amigo a chance de formar uma equipe – integrando jornalistas, programadores e designers – e criar uma espécie de laboratório digital. Eles integrariam bancos de dados, a área de expertise do Aron, com visualizações fascinantes. Adaptariam conteúdo multimídia – excelentes textos, fotos de cair o queixo, vídeo, áudio – a isso. Inventariam inclusive novas e à primeira vista estranhas formas de fazer jornalismo.

(Os que gostam de empregar seu tempo debatendo se “blog é jornalismo”, ou se “twitter é jornalismo” poderiam reformular a pergunta: “tag cloud é jornalismo?”. Aron e seu grupo de “cybergeeks renegados”, como a revista New York classificou a equipe, provaram que sim, é possível fazer jornalismo com tag clouds – só depende de como você as usa.)

Já havia algum tempo que o Times fazia podcasts em áudio. O jornal também criou o obituário em vídeo, com entrevistas ultra-secretas em que algum personagem admirável, já em vias de extinção, contava em primeira pessoa a história de sua vida. O primeiro dessa série foi o do humorista Art Buchwald, que já começava dizendo: “Olá, eu sou Art Buchwald e acabo de morrer!”. Outros entrevistados estão na fila, com o jornal apenas aguardando suas mortes.

Isso subvertia a compartimentalização das mídias que tínhamos em mente no final do século passado, quando entrei na faculdade. Um aluno que queria se dirigir para o impresso, por exemplo, não via utilidade nas aulas de TV e rádio. Era gostoso ter certezas dessas, especialmente porque elas davam um nobre pretexto para cabular aula e tomar um cafezinho lendo Gay Talese. O problema é que a internet – então uma coisa lentíssima que acessávamos em XTs com letrinhas verdes – acabaria por provar, em uma década, que essas certezas eram míopes. Sim, alguns diziam que ela viria a integrar tudo. Mas parecia um futuro distante.

Quando entrei na faculdade, em 1995, arrumei um emprego como contínuo num jornal centenário de Porto Alegre, o Correio do Povo. Como tal, convivia com todos, do diretor de redação aos operadores das rotativas – e, com isso, pude acompanhar uma transição fascinante. Quando entrei, as páginas ainda eram compostas em pestapes – placas de acrílico onde se colavam textos e fotos – para depois fotolitar. Para publicar uma foto de arquivo, precisava do boy para buscar a pasta de fotos, levar ao editor, entregar a escolhida ao diagramador, transportar a foto indicando dimensões para a fotocomposição e, meia hora depois, recolher o resultado para o pestapista colar com cera quente. Em menos de dois anos, quase tudo isso podia ser feito em segundos apenas por um profissional em seu terminal.

No Brasil, os computadores estão presentes nas redações desde 1983, quando a Folha de S.Paulo inaugurou seu uso. Nos anos seguintes, eles se espalhariam pelas redações brasileiras causando alguma polêmica: simbolizavam uma mudança no modo tradicional de fazer jornalismo. Verdade que era uma tradição de poucas décadas. Mas, ainda assim, era tradição.

Durante um longo tempo, todo o debate sobre os usos jornalísticos do computador se centrava em uma questão: o texto. O computador era usado como pouco além de uma máquina de escrever com luzinhas. Nas revistas especializadas dos anos 80 e início dos 90, como Imprensa e Revista de Comunicação, invariavelmente os textos que tratavam do assunto suspiravam de saudade das laudas, do som das teclas da máquina de escrever ou lamentavam que o computador “estragou” a qualidade do texto ao provocar a demissão dos revisores de provas tipográficas. Muitos profissionais excelentes demoraram anos a perceber outros usos possíveis para a máquina. Oportunidades de treinamento em reportagem com o auxílio do computador abertas a jornalistas em geral só começaram a surgir no país a partir de dezembro de 2002, com a criação da Associação Brasileira de Jornalismo investigativo.

As empresas, enquanto isso, viram na informática uma maneira de pôr no mercado produtos impressos feitos com mais eficiência, menos profissionais intermediários e melhor acabamento. Um jornal dos anos 80, hoje, parece um tijolão se comparado até mesmo aos mais desengonçados jornais que existem hoje. A forma como foram incorporados os recursos da informática à produção gráfica colocou o Brasil no mapa da excelência em design de notícias, com prêmios internacionais reconhecendo jornais como o Correio Braziliense, diversas vezes premiado pela Society for News Design.

Em técnica de reportagem, porém, continuamos tendo muito a desenvolver.

Noutras paragens, os jornalistas perceberam há mais tempo a utilidade dos computadores para a apuração. Desde a década de 1960, quando os computadores eram operados com cartões perfurados, alguns pioneiros já entrevistavam dados com o auxílio da informática. Esses dados podiam ser dezenas de entrevistas com uma amostra cientificamente selecionada de entrevistados para encontrar as causas de revoltas raciais, como fez Philip Meyer em 1967. Podiam também ser todas as ocorrências policiais do condado de Dade, em Miami, onde o repórter Clarence Jones chegou ao ponto de conhecer mais do que a polícia sobre os padrões de crime da cidade, em 1970. Podiam ser decisões judiciais, como as que Don Barlett e James Steele analisaram em 1971 para ver se, condenados por um mesmo crime, um réu negro e um réu branco tinham muita diferença na pena à qual eram condenados (adivinhe só).

A partir do final dos anos 80, a tendência foi ainda mais longe. E foi aí que tudo começou a ficar mais interessante. A principal associação de jornalismo investigativo dos Estados Unidos, a Investigative Reporters and Editors (IRE) criou em 1989 uma divisão especializada em treinar jornalistas para o uso do computador como ferramenta de apuração, o National Institute for Computer-Assisted Reporting (NICAR).

Aron Pilhofer, meu companheiro de taças em Londres, foi um dos instrutores da IRE nos anos 90. Também especializou-se em analisar bancos de dados de doações eleitorais, quando trabalhou no Center for Public Integrity. Era o homem certo para a doce tarefa de comandar o laboratório do futuro do New York Times. E vinha na época certa, também.

Pela primeira vez, a disponibilidade de banda larga nas casas dos leitores e inovações como o YouTube permitiam integrar diversas formas de conteúdo. O acúmulo de experiência e pressão da sociedade desde que os Estados Unidos criaram sua lei garantindo o direito de acesso a informações públicas, em 1966, ampliada em 1996 para incluir dados digitais, tornara disponíveis terabytes de dados sobre como o governo se organiza. Havia tecnologia e dados para serem moldados por ela. Agora, dependia de os profissionais arregaçarem as mangas.

Um campo e uma época diferentes do jornalismo atual ilustram o papel que as condições de um dado momento têm sobre as mudanças que podem ocorrer em áreas da criação humana.

Em 1959, portanto há meio século, o bebop ainda era um estilo musical popular, mas os próprios músicos se sentiam limitados pela forma. Para complicar ainda mais, alguns dos mais queridos músicos de jazz estavam morrendo. Em pontos diferentes dos Estados Unidos, diversos músicos de repente resolveram experimentar com novidades. Com isso, foram gravados vários dos mais ousados discos de jazz de todos os tempos.

   -   Em duas sessões, em março e abril, o trumpetista Miles Davis reunia um sexteto para gravar o disco “Kind of Blue”. Eles nunca haviam ensaiado juntos antes e sequer havia partituras das composições. Miles apenas entregou aos seus músicos – que incluíam o saxofonista John Coltrane – uma escala, explicando que desejava improvisar sobre ela. O resultado é um dos discos mais aclamados da história.

   -   O pianista Dave Brubeck começava com “Time Out” uma série de experiências com o compasso das composições, ou seja, o ritmo que elas devem seguir. Em temas como “Blue Rondo A La Turk”, Brubeck chega ao extremo de pôr cada um dos instrumentos aparentemente tocando em um compasso diferente – e funciona muito bem.

   -   Charles Mingus gravava “Mingus Ah Um”, em 5 e 12 de maio. Suas composições se baseiam em estruturas tradicionais do blues e do gospel, homenageando também músicos mortos como Charlie Parker, Duke Ellington, Lester Young e Jelly Roll Morton – mas, ao mesmo tempo, avançando em relação à tradição.

   -   Ornette Coleman levava a experimentação a maiores extremos no disco cujo nome mais parecia um manifesto: “The Shape of Jazz To Come” (A forma do jazz que virá). Coleman abusa das dissonâncias, criando o jazz de forma livre.
Todos os caminhos estavam abertos. Tudo podia ser feito, dependendo apenas da competência e criatividade dos profissionais envolvidos.

O jornalismo, hoje, se encontra em um momento bastante semelhante. Se, por um lado, os jornais impressos vivem uma longa crise nos Estados Unidos, há um boom de entidades independentes e meios de comunicação tradicionais experimentando para tentar descobrir qual será a forma do jornalismo que virá.

As tentativas podem ocorrer em experiências calcadas no jornalismo tradicional, mas inovando na forma e profundidade, como faz o New York Times – quase um “Mingus Ah Um” do jornalismo. Pode ser pela profundidade e apuro técnico de um Center for Public Integrity em seus múltiplos projetos – quase um “Kind of Blue”. Pode ser por meio da organização cerebral de dados brutos, como fez Adrian Holovaty em seu Everyblock – quase um “Time Out” jornalístico. Ou mesmo a cacofonia da Web colaborativa e dos agregadores de conteúdo, uma espécie de “The Shape of Jazz to Come” da era da informação.

É ocioso discutir, neste ponto, qual dessas formas é “mais certa” do que a outra. Qualquer previsão a respeito tende a ser furada pelas circunstâncias. Híbridos de pedaços de uma e pedaços de outra podem acabar surgindo, e gradualmente se chegará à nova gramática da informação. Ou não, como aconteceu com o jazz – até hoje, a sua essência é a pluralidade.

No Brasil, há ainda poucas experiências de radicalidade comparável à do New York Times em termos de como tratar a informação para a nova realidade. As redações comemoram a saúde financeira dos jornais impressos e lamentam que seus websites não atraiam receita suficiente para serem comercialmente viáveis. Na verdade, as tiragens que crescem são as de jornais populares, baratos, consumidos por novos leitores que antes não liam e que provavelmente não adquiriram o hábito de se informar pela internet. Mas ainda vai chegar o momento em que uma parcela considerável da população estará conectada à internet via banda larga.

As iniciativas mais interessantes de informação jornalística usando a internet têm vindo de onde menos se espera. Em 2006, veio de uma ONG, a Transparência Brasil, a iniciativa de reunir num só banco de dados todo tipo de informação pública disponível na internet sobre os deputados que se candidatariam à reeleição (tive a honra de coordenar a implantação do projeto). Um mês após a estréia, a Folha de S.Paulo repetiu em seu website parte da iniciativa. Em 2008, um coletivo independente de jovens jornalistas de São Paulo produziu um trabalho de reportagem multimídia que se tornou referência nacional. (Um dos jornalistas envolvidos, Rodrigo Savazoni, também coordenou no jornal O Estado de S.Paulo, naquele ano, um banco de dados apresentando os candidatos a vereador da maior cidade do país.)

É natural que, diante de um cenário de mudanças, o ser humano sinta insegurança e apreensão. Ocorre, porém, que neste caso existe uma pressão criativa e econômica sobre as formas tradicionais de jornalismo. O jornalismo precisa se adaptar à tecnologia, mas sem perder seus valores centrais: a disciplina da verificação, a depuração, o interesse público.

Por mais que as formas tradicionais de jornalismo nos sejam tão queridas quanto a música de Charlie Parker e Billie Holiday, o jornalismo que virá já está começando a tomar forma – e quem vai lapidá-la serão as gerações de jornalistas que se criaram acostumados a ver o computador mais como um eletrodoméstico do que como um instrumento da ficção científica.



* Marcelo Soares é Repórter de política da MTV Brasil e colunista do jornal MTV Na Rua. Antes da MTV passou madrugadas em redações de jornal, ajudou a criar a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, ganhou um prêmio Esso por montar um banco de dados de políticos e tomou um cafezinho no shopping center construído onde um século atrás foi a casa de seus tataratios, no sul da Suécia.Owner do blog E você com isso ?

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