segunda-feira, 21 de junho de 2010

Publicando o joio




por
Rodolfo Araújo*


Recentemente escrevi sobre o fenômeno da Viralização da Violência destacando a forma como a mídia transforma verdadeiras barbaridades em acontecimentos perfeitamente banais, absolutamente cotidianos. Veículos tradicionais e programas de grande audiência exploram tragédias pessoais e dores coletivas, embalando-os para presente sem nenhum pudor, tampouco constrangimento.

Ao mesmo tempo, a proliferação de atrações desta natureza revela a crescente aceitação da sociedade por esta modalidade de entretenimento voltada para a espetacularização do mundo cão. Uma reação aparentemente normal, característica dos livres mercados contemporâneos, onde as corporações oferecem aquilo que o consumidor demanda, em quantidades e configurações compatíveis com o que a sociedade comporta. Assim como a padaria da sua esquina, as montadoras de automóveis e os traficantes de drogas.


Em Origin of Wealth: Evolution, Complexity, and the Radical Remaking of Economics (Harvard Business Press, 2007), Eric Beinhocker oferece um enfoque evolucionista ao modo como enxergamos a Economia. Este olhar macro funciona para analisar, também, partes dos sistemas econômicos como, por exemplo, a mídia. Segundo Beinhocker, movimentos evolucionistas passam por três estágios principais: inovação, seleção e replicação.

Dos primeiros grunhidos dos hominídeos nas savanas africanas, à prensa de Gutemberg e ao advento da Internet, a comunicação experimenta inovações não só nas Tecnologias Físicas mas também nas Sociais, tendo estas influenciado naquelas - e vice versa. Enquanto que algumas criações perecem pelo caminho, outras triunfam sendo escolhidas e repassadas às gerações posteriores. Na etapa seguinte, as novidades estabelecidas têm seu uso amplificado, copiado e imitado tornando-se, muitas vezes, o novo padrão. Um processo amplamente difundido e comumente conhecido na literatura corporativa como competição.

A superexposição da vida privada e a exploração dos sórdidos detalhes de crimes macabros, que ora preenchem a mídia, também são frutos de processo semelhante. Originados em inovações como Big Brother, a série Faces da Morte ou campeonatos de Vale-Tudo, a bisbilhotice e a glamurização da violência foram selecionados pelo fetiche popular em ter livre acesso aos detalhes audiovisuais da vida alheia, quer na alegria ou na tristeza - com especial preferência a esta última, contudo.

Tal como no enfoque evolucionista de Beinhocker, tais inovações foram apoiadas por novas Tecnologias Físicas - como a proliferação de câmeras digitais cada vez mais potentes, reduzidas e baratas e na facilidade de armazenamento, transmissão e difusão de dados - e Sociais - como a crescente aceitação de escândalos e a paulatina redução dos pudores sociais, exigindo bizarrices cada vez mais escabrosas.


Destacar comportamentos grotescos - seja um parricídio ou a devassidão do astro da moda - carrega consigo componentes de degradação social, na medida em que colocam tais ações dentro de nossas casas, com ares de acontecimentos banais, quase corriqueiros. Do mesmo modo que os jornais não publicam histórias de suicídios - para evitar a imitação - deveriam suprimir homicídios. Afinal, você não fica descrente ao saber que na maioria dos países os suicídios são mais frequentes que os homicídios? Provavelmente a maioria dos massacres perpetrados por franco atiradores não aconteceria se isso não fosse garantia de destaque nos jornais, onde seus perpetradores buscam sua mórbida fama póstuma.


Antes que o leitor se apresse em identificar traços de censura no meu texto, alerto que a sociedade é baseada em torno de restrições a direitos individuais em nome de benefícios coletivos. A liberdade - especialmente a de expressão - serve ao interesse público, garantindo o acesso a informações relevantes principalmente no acompanhamento e controle das instituições públicas, no sentido de impor limites ao poder. Isso nada tem a ver com o direito de os paparazzi trabalharem, ou com fotos contrabandeadas do corpo inerte da menina Nardoni. Qual o interesse público na barriga do Ronaldo ou nos hematomas de uma criança morta?

Assim como uma economia de mercado seleciona aquilo que chega ao seu alcance e permite, por assim dizer, que a mídia se transforme neste monstrengo surreal, cabe a ela também impor seus limites e rechaçar aquilo que lhe é prejudicial, independente do horizonte temporal analisado - seja pão francês, automóveis ou cocaína.


Mas ao mesmo tempo em que há leis institucionais, sociais e de mercado para regular o consumo, isto não exime de culpa o lado responsável pela sua produção. O papel do jornalista e do editor torna-se, portanto, fundamental neste processo de desinfetar uma mídia sem limites. Embora eles respondam aos incentivos do seu setor - em última instância, a audiência - devem obedecer também a seus instintos e valores. Do contrário, correm o risco de ratificar a célebre frase de Adlai Stevenson: "Um editor de jornal é alguém que separa o joio do trigo - e imprime o joio".


* Rodolfo Araújo é Mestre em Administração pela PUC-RJ; Pós Graduado em TI pela FGV-RJ; Bacharel em Comunicação Social pela UFRJ. Carioca morando em São Paulo há quatro anos.Sempre buscando aprender e ter novos pontos-de-vista sobre as coisas do dia-a-dia.Escreve na Você SA e no Não Posso Evitar

Um comentário:

  1. Bastante bacana Rodolfo...cheguei a ler um post seu no acerto de contas.

    Tenho refletido no meu blog o mesmo fato a que você se refere, pensando numa indústria do medo e sua tecnologia do terror.

    Convido-o ao Espaço Banal

    http://espacobanal.blogspot.com/2011/04/mercantilizacao-do-medo.html#comments

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