O New York Times aposta na nova gadget da apple
por
Sérgio Vilas Boas¹
Os e-readers e tablets prometem mudar a maneira de produzir, comercializar e adquirir conteúdos jornalísticos. Revolução? Se sim, ela ocorre antes mesmo de os jornais se sentirem confortáveis com as outras notáveis mudanças dos últimos anos. Salvação? Se sim, não se sabe ao certo (ainda) a forma e o valor. O fato indubitável é que essas devices – do Kindle ao iPad – abrem possibilidades extras para o negócio jornal.
O iPad da Apple é um marco no design de mídias digitais portáteis, leves, amigáveis, nítidas e conectivas. Em pouco mais de um mês (o produto foi lançado no início de abril), vendeu-se um milhão de unidades nos Estados Unidos. Milhares de early adopters europeus e australianos também acorreram às lojas Apple no dia do lançamento mundial, no final de maio.
Até o fechamento desta edição não havia previsão para a comercialização oficial de iPads em países como Brasil, China, Índia e Rússia. Calcula-se que mil brasileiros viajantes tenham um iPad, número talvez maior que o de usuários do Kindle, e-reader criado pela Amazon (a primeira geração chegou ao mercado americano em novembro de 2007). Mas o Kindle levou um ano para atingir a marca de um milhão de unidades vendidas.
Há uma explicação plausível: o Kindle DX (terceira geração), com tela em preto-e-branco, talvez satisfaça o desejo de leitura de livros digitais com foco em texto, não tanto em imagens e movimentos. Mas, para quem não abre mão de “uma experiência mais completa” – como dizem os estrategistas – um tablet como o iPad é irresistível; e o preço também atrai: a versão mais barata custa US$ 499, mais ou menos o mesmo que o Kindle DX (US$ 480).
E-readers X tablets
A principal diferença entre um e-reader e um tablet é exatamente esta: o e-reader é um leitor eletrônico, enquanto o tablet é multimídia. Os dois conceitos não são necessariamente excludentes. Se a expectativa de queda de preço nos próximos anos se confirmar, poderá haver público para ambos. Mas o design e a interatividade dos dois ainda estão distantes do ideal.
“Aparelhos que não permitem acesso fácil à internet, seja e-reader ou tablet, não têm chance de sucesso. A gente espera estar conectado. Afinal, as nossas transações dependem disso”, sublinha Roger Fidler, da Universidade de Missouri, que trabalha com protótipos de novas mídias desde os anos 1970. Para ele, contudo, os leitores portáteis continuam sendo lanche e as mídias impressas, o jantar.
Fidler e outros pesquisadores de designs interativos para tablets estão avaliando o espectro comportamental dos potenciais usuários dessas devices. É o mesmo processo que entreteve os designers do iPhone, que previram as ações das pessoas diante da pequena tela de um aparelhinho multifunções cabível no bolso da camisa.
Em tablets como o iPad, menor que uma folha A4 e com tela sensível ao toque (na vertical ou na horizontal), pode-se navegar na web, assistir a filmes, divertir-se com games, interagir com anúncios de produtos e serviços (fazer uma reserva instantânea no restaurante exibido no anúncio) e ler livros, revistas e jornais.
Com os próprios dedos o leitor seleciona matérias, vira páginas, toca na foto de um jogador comemorando um gol e em seguida acompanha a jogada inteira do gol. Deitado numa rede ou na areia da praia, o usuário atinge facilmente a página de esportes, a de reportagens especiais, as histórias em quadrinhos e pode até fazer as palavras cruzadas.
Desafio para os jornais
Essa nova experiência de interação criada pela Apple é no mínimo um capítulo novo no processo de integração multiplataformas, que já está sendo explorado por jornais brasileiros. O iPad representa também um grande avanço em relação aos smartphones. Com essa bela tacada de marketing, o futurista Steve Jobs sacudiu o mercado editorial como um todo.
“O desafio é usar os e-readers e tablets para vender conteúdos, evitando os ‘erros’ cometidos com a migração para a web. Os efeitos da gratuidade ainda assombram”, alerta Kerry Northrup, da Western Kentucky University. Northrup esteve em São Paulo para evento da Associação Nacional de Editores de Revistas (ANER). “Não permita que essas novas mídias pautem toda a sua estratégia empresarial.”
Northrup foi um dos protagonistas do projeto Newsplex de convergência multimídia da Universidade da Carolina do Sul. Na visão dele, os jornais têm de entregar seus conteúdos com competência, independentemente de os aparelhos estarem fixos ou móveis, de serem pesados ou leves. “O problema central continua: fazer jornalismo de qualidade”, enfatiza.
“Pensem em maneiras diversas de narrar uma história (talvez a mesma história) em vários formatos, pinçando o que há de melhor na apuração e adaptando cada parte ao formato de entrega mais adequado. O que fica melhor em vídeo? O que fica melhor online? O que fica melhor no papel? Os tablets exacerbam essas orientações.”
Para Northrup, o iPad oferece uma experiência diferente de distribuição e recepção de conteúdos, seguindo a linha das mudanças de hábitos de consumo ocorridas na última década. “Nós agora preferimos a flexibilidade à alta fidelidade, a conveniência à beleza, o rápido e amarrotado ao lento e polido. Ter a coisa aqui e agora é mais importante que tê-la em perfeito estado.”
Entrando em nova etapa?
Essas mudanças de comportamento se encaixam no perfil dos usuários de iPads, cujas telas manchadas pelas digitais dos dedos indicadores reafirmam que essas devices serão uma espécie de extensão do corpo humano, como as roupas, os sapatos e os celulares, que, com o tempo, adquirem o modo de ser de quem os transporta para cima e para baixo.
Contudo, o publico ávido por novas experiências digitais é o mesmo que, segundo o designer Roger Fidler, ainda prefere que artigos e reportagens sejam organizados e editados por grandes empresas jornalísticas. “Os jornais digitais altamente personalizados projetados por especialistas não atraíram a atenção esperada”, afirma.
Com os tablets se anunciando como onipresentes num futuro bem próximo, será necessário retrabalhar a ideia de “convergência multimídia”, acredita Northrup. “Convergência não é mais a solução. Deturparam o conceito. Ele acabou sendo utilizado para outros fins, como cortes de custos, corte de pessoal e maior controle sobre a produção”, critica. “Ou seja, o contrário do que deveria ser.”
Northrup prefere o conceito de media fusion, para o qual o treinamento de jornalistas é tão valioso quanto a escolha do conjunto de aplicativos que permitem a edição e a entrega dos conteúdos. “Não presuma apressadamente que você tem de oferecer a edição inteira do seu jornal ou revista num tablet”, adverte.
“Faça tudo sempre pensando na matéria, no assunto e no público potencialmente interessado”, continua. “Quem está interessado neste assunto? Onde essas pessoas estão? Como encontrá-las? E não leve muito a sério quem lhe disser que tem as respostas certas para estas e muitas outras perguntas. Estamos entrando numa nova etapa.”
MAIS QUE UMA PLATAFORMA
Na era dos tablets, o maior desafio dos jornais será reestruturar suas operações para se adaptar às novas ferramentas, aos novos comportamentos dos usuários e à entrega de conteúdos em múltiplas plataformas. Especialistas sugerem que os fluxos de produção para as várias mídias continuem no caminho da unificação e da integração.
O iPad é uma realidade tanto quanto uma promessa. Espera-se que a nova device da Apple seja um conjunto de novos canais de distribuição para pacotes multimídia. Mas, para estar dentro de um iPad, é preciso construir esses pacotes. “Estudem imediatamente um modelo de negócios sustentável antes de apostar nos tablets”, sugere Kerry Northrup, da Universidade de Missouri.
Na verdade, a Apple está fazendo mais do que simplesmente vender uma nova plataforma de mídia. A empresa de Steve Jobs está também alavancando a venda e utilização de seus aplicativos. Por outro lado, o sistema todo só poderá se expandir se houver um diversificado ecossistema de conteúdos App à venda.
“O mercado, no caso, será definido pela Apple e o ponto de vista da empresa ainda é desconhecido”, advertem as consultorias internacionais de mídia. O iPad e outros tablets que estão a caminho constituem tanto uma oportunidade de receita quanto um mostruário para o negócio jornal. “No entanto, os tablet sozinhos não são a salvação do jornal como negócio”, alertam os consultores.
Os designers de plataformas para tablets estão apostando num aparelho portátil com bateria de longa duração, tela plana de alta resolução, conexão sem fio e preço abaixo de US$ 500. As consultorias internacionais, por sua vez, acreditam que a necessidade de conectividade tende a ser um empecilho à rápida universalização dos tablets.
CINCO MIL ANOS DE APERFEIÇOAMENTO
O arquiteto digital Roger Fidler, da Universidade do Missouri, aposta na massificação por meio do modelo “documento”. O livro, a revista e o jornal são todos resultado de 5 mil anos de adaptação nossa ao “documento”, diz ele. “Nesse sentido, os tablets não são mais que a última encarnação de algo que vem de muito longe.”
Fidler tem visitado fábricas de tecnologia de tela plana na tentativa de persuadi-las a criar um produto que “encarne” as necessidades dos jornais. No Japão, grandes marcas como Sharp, Sony, NEC e Matsushita estão desenvolvendo tablets. Nos Estados Unidos, a ATT e a Motorola, entre outras, entraram no jogo.
Mas para ter sucesso no mercado de consumo geral será necessário um tablet esbelto que: pese menos de um quilo; tenha resolução equivalente à da tinta em papel; dialogue com outras máquinas; seja touch screen; use bateria com vários dias de duração; possua ampla capacidade de armazenamento e tela vertical que lembre os “documentos” com os quais lidamos no dia-a-dia.
Ray Pearce, diretor de circulação do “The New York Times”, acrescenta à lista as seguintes características: conectividade ubíqua, possibilidade de download a qualquer tempo, design convidativo à leitura, ágil e-commerce (poder comprar algo com um único toque) e múltiplas formas de se criar um ecossistema de anúncios que se retroalimente.
Apesar das derrapagens na migração para o online, a luz continua brilhando no fim do túnel. O tablets apontam uma direção diferente para o mercado editorial. As versões digitais das revistas “Time” e “Wired”, por exemplo, puderam ser baixadas no iPad nos últimos meses por US$ 4,99 cada edição.
A diferença crucial entre o jornal e a revista em tablets talvez seja a periodicidade. Acredita-se que seja mais “simples” em periodicidades semanal e mensal. Embora a entrega dos conteúdos tenha um custo bem mais baixo (não se gasta óleo diesel, papel, tinta etc.), será necessária grande agilidade para oferecê-los aos usuários de tablets dia após dia.
POR UMA ESTRATÉGIA COMUM
O consultor da ANJ, Antonio Athayde, que trabalha com computadores desde 1965, considera “inegavelmente lúdica” a experiência com um iPad. “De certa forma, é divertido compará-lo com as centenas de equipamentos que o precederam. Mas, pessoalmente, acho que daqui a alguns meses os tablets com sistema operacional Android vão surpreender. O iPad nada mais é do que um fruto da cabeça do maior gênio do marketing da atualidade”, comenta.
A ANJ reuniu um grupo de técnicos dos principais jornais do país para rodadas de discussões que poderão levar a uma estratégia comum de abordagem do relacionamento do meio com as “lojas” nas quais os aplicativos para e-readers e tablets são vendidos. “Tal estratégia poderá vir a ser utilizada por um grande número de jornais associados.”
O conceito de que tudo na internet tem de ser oferecido de graça, principalmente a informação, prejudicou o negócio das empresas de comunicação, concorda Athayde. “Reverter isso é um enorme desafio. A questão de como enfrentá-lo ainda não está clara. Talvez a única certeza seja a de que só com atitudes coletivas se chegará a um resultado mais rapidamente.”
As mudanças no fluxo de produção dos jornais, anteriores à chegada dos e-readers, resultaram em redações integradas que geram edições para internet e para papel. “Jornalistas talvez sejam os profissionais que tiveram sua rotina mais afetada pelas recentes inovações tecnológicas na área. Mas os e-readers são apenas mais uma plataforma de distribuição.”
Não faltam softwares e aplicativos para criar e inserir pacotes de conteúdos nos tablets. Um deles é o holandês Woodwing, vendido no Brasil pela Epyx Soluções Editoriais. O Woodwing foi utilizado em conjunto com o Adobe InDesign para a geração do App da revista “Time”. O desenvolvimento do projeto demorou cinco semanas, incluindo o tempo de aprovação na Apple.
“Há um punhado de softwares à disposição para inserção de edições nas mais diversas tecnologias de distribuição de informação. Algumas dessas tecnologias são oferecidas por empresas brasileiras, e o grupo técnico da ANJ também está avaliando isso”, adianta Athayde. “Os tablets oferecem recursos de convergência entre texto, áudio, vídeo e navegação na web, trazendo mais oportunidades criativas aos editores.”
*Originalmente publicado no “Jornal da ANJ”, edição de junho de 2010
¹Sérgio V. Boas é escritor, professor de Jornalismo Literário na ABJL e editor do www.textovivo.com.br.
Twitter: @Serg_Vilas_Boas
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